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a world in a grain of sand

um mundo num grão de areia

a world in a grain of sand

Da minha estante para o mundo #3

Sofia
30
Jul20

Tarrou avait perdu la partie, comme il disait. Mais lui, Rieux, qu’avait-il gagné? Il avait seulement gagné d’avoir connu la peste et de s’en souvenir, d’avoir connu l’amitié et de s’en souvenir, de connaître la tendresse et de devoir un jour s’en souvenir. Tout ce que l’homme pouvait gagner au jeu de la peste et de la vie, c’était la connaissance et la mémoire.

Albert Camus, La Peste

 

Os últimos tempos têm sido uma realidade alternativa que ninguém está à espera de viver. De repente, o mundo vive em conjunto um momento difícil. Individualmente e colectivamente vamos reagindo aos acontecimentos. Os dias vão passando de forma estranha porque temos de nos adaptar a uma realidade nova.
Tento pensar na História e como sempre a achei cíclica. Penso também na Literatura e em livros que já li. Os acontecimentos vão-se desenrolando, a nossa vida muda e adapta-se às novas situações. Um dia tudo passou e resta-nos esta memória individual e colectiva onde conhecemos o pior mas também o melhor que temos como humanos. Sabemos também pela História e pelas histórias que haverá dificuldades e perdas, mas resta-nos continuar e pensar que um dia tudo passou.
 
Dans certains cas, continuer, seulement continuer, voilà ce qui est surhumain.
Albert Camus, La Chute
 
As palavras não são de hoje, foram escritas há alguns meses, mas quis partilhá-las convosco e desejar-vos força, não só neste pedaço de história colectiva como também nas vossas histórias individuais. Porque é preciso continuar. Há momentos em que o importante é continuar.

Dias que passam

Sofia
28
Jul20

Acordei um pouco cansada por culpa minha. Agora, deu-me para não conseguir adormecer facilmente. Não são preocupações, não é calor a mais, não é falta de cansaço. Sou eu. Ter ido de férias e ter criado um blog fez-me bem, porque acabo por me distrair mais. No entanto, talvez por estar ainda a habituar-me a estar mais distraída e despreocupada, dou comigo tão bem-disposta que não consigo adormecer. Antes não dormia tão bem porque me preocupava demais. Saía do trabalho e não conseguia desligar-me facilmente. O teletrabalho é bom, mas, quando passamos a maior parte do tempo fechados em casa, falta-nos alguma acção que nos permita trocar o chip. Tenho usado agora o blog como escape, mas ainda estou a tentar organizar-me e encontrar o equilíbrio.

Há não muito tempo, quando precisava de desligar, ia a pé do trabalho até ao Rossio. Pelo caminho via pessoas a sair do trabalho, como eu; via turistas a passear; via pessoas a caminho do ginásio (antes da pandemia me trocar as voltas, pensava voltar a ser outra vez uma dessas pessoas que saía do trabalho e ia para o ginásio - fazia-me bem); via pessoas nas esplanadas; via alguém na sua secretária no primeiro andar de uma ourivesaria e pensava no que aquela pessoa estaria a pensar naquele momento; via pessoas a ver as montras da Avenida da Liberdade (eu também, se bem que, no meu caso, eu não visse as montras - eu olhava-as sorrateiramente para não me enamorar - ainda me lembro de ter andado a namorar um cardigan azul escuro da Pinko...); via pombos; via árvores... Às vezes andava rápido demais, porque, quando vou sozinha, tenho a mania de andar rápido, mesmo quando tento andar devagar. Mesmo assim, eu passava pela cidade e guardava as suas pequenas vidas na minha algibeira. Guardava tudo e sentia-me plena enquanto caminhava e o ar frio me batia nas faces.

Do que mais gosto são os dias em que o ar frio nos bate na cara. Por isso, adoro os começos e fins de dia. A realidade está toda concentrada naquela sensação do ar frio a bater-nos no rosto. Quando hoje acordei e me levantei, abri os estores e esta sensação de que tanto gosto estava lá. Sentia o corpo cansado de ter dormido pouco, contudo arranjei forças para agarrar o dia assim que olhei para a rua a partir da minha janela. Abri a janela da sala para o ar entrar, peguei na minha caneca de café e liguei o meu computador para organizar algumas coisas antes de ir trabalhar. Sempre que ligo o meu computador sou transportada para Manchester, pois o meu ecrã de bloqueio é uma fotografia de Salford Quays. Mais uma vez, senti o ar frio bater-me na cara. Em Manchester, senti-o como nunca antes o tinha sentido, em conjunto com pequenos flocos de neve.

Aconcheguei-me nos meus pensamentos e, pouco a pouco, fui-me preparando para mais um dia.

 

Salford Quays, Manchester

Salford Quays, Manchester

Foto: Ana Sofia Alves

O nascimento de uma pérola

Sofia
28
Jul20

Vivemos em conchas que querem permanecer na história. 

Sulcados pelo tempo, talvez até deformados, resistimos. 

Mesmo com as velas rasgadas, oferecemos o corpo ao mar 

e a cabeça à maresia. Logo, há-de chegar o dia. 

 

A maré enche de novo a praia e limpa-nos as imperfeições. 

Tocamos nas nossas conchas lisas e sabemos que nos demos 

até ao último sulco. Engolimos o frenesim das ondas e 

implodimos. Dentro de nós nasce uma pérola de lágrimas e sal. 

 

Ana Sofia Alves

Da minha estante para o mundo #2

Sofia
27
Jul20

Se houvesse um homem que se atrevesse a traduzir o que lhe vai no coração, escrever a sua verdadeira experiência, o que é verdadeiramente a sua verdade, acredito que o mundo se desfaria, se partiria em mil pedaços e não haveria deus, acidente, ou vontade que conseguissem voltar a juntar os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis com que se formou o mundo.

Henry Miller in Trópico de Câncer

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