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a world in a grain of sand

um mundo num grão de areia

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um mundo num grão de areia

Pensamento do dia #16

Sofia
05
Jul25

A_Persistência_da_Memória.jpg

A Persistência da Memória, Salvador Dalí

(imagem: Wikipedia)

 

A única vez em que me lembro de ter sentido medo de morrer foi a meio da noite, quando, há poucos anos, acordei com um ataque de pânico.

Não me lembro de ter sonhado nem me lembro de andar às voltas na cama. Lembro-me de acordar, sem aviso, com o coração a sair do peito ou da boca, completamente acelerado, e uma sensação de falta de ar que nunca tinha sentido.

Nunca tinha sentido algo assim, o corpo incontrolado e a querer levar-me sabe-se lá para onde. Senti que era um alerta grave, mas levantei-me e fiz por chegar à casa-de-banho. Comecei a sentir imensas tonturas, fraqueza e, pouco depois, imensos suores frios. Pensei que estava a ter um ataque cardíaco, que só podia ser isso, pois nunca tinha sentido algo assim tão forte. Não conseguia pensar direito e chamei pelo meu namorado que, adormecido, não percebeu nada do que se passava e me disse para molhar a cara. Tentei respirar fundo e molhar a cara. Não foi fácil, mas, como o problema não era fatal, embora o parecesse, foi possível voltar a mim.

A sensação de tempo, neste episódio, é estranha. Creio que foi tudo muito rápido e, ao mesmo tempo, bastante lento. Sei que tive medo de morrer e que me queria agarrar à vida.

Não foi nada, mas ficou-me na memória. Não se repetiu, mas a persistência da memória serve para lembrar os momentos e recordar-me de que é bom querermos agarrar a vida, mesmo no meio do absurdo. Temos esta capacidade louca de agarrar a vida, reconstruir e adaptar. Espanta-me sempre essa capacidade do ser humano que, mesmo em adversidades, tem esta capacidade louca de se reconstruir de corpo e alma.

Na época estava a trabalhar imenso e as enxaquecas eram frequentes e fortes. As enxaquecas não desapareceram e, mesmo depois da mudança de trabalho, tive alguns episódios em que tive de mergulhar no silêncio e escuridão do quarto e suportar os vómitos. (Talvez seja a náusea pela monotonia.) Gostava de pensar como a médica que me atendeu um dia: "Enxaquecas vai ter sempre: é ter a medicação à mão." Fosse tudo simples como esta frase.

Prefiro antes as palavras de Miguel Torga* e agarrar-me à persistência das memórias e à minha loucura:

És homem, não te esqueças!

Só é tua a loucura

Onde, com lucidez, te reconheças...

 

* poema "Sísifo"

Calendário

Sofia
05
Jul25

Nos meus lábios, um doce
sabor a insónias e, nos meus olhos,
restam apenas brilhos e névoas
dos dias contados no calendário.

Cada traço no calendário é
mais uma lágrima que escorre
e se confunde com a chuva.

Nos meus lábios fica um suspiro,
uma palavra não dita e um peito
escancarado ao mundo e à vida.

Sobram-me cinzas na terra,
lábios molhados e sedentos
de beijar todas as horas da vida.

Tivesse eu coragem de beijar
almas como se beija a vida
e soltar do peito as palavras
que cobrem páginas com pó!

Sobram-me os olhos cansados,
dedos gastos e sangue gelado.
Sobro eu, aqui, só.

Ana Sofia Alves
5 de Julho de 2025

 

A Naifa - Monotone

5 minutos antes do Sol raiar

Sofia
04
Jul25

As madrugadas são serpentes afiadas

que afundam os seus dentes no

meu corpo cansado.

O corpo arrasta-se, o corpo esperneia,

enquanto a madrugada é feia

e divide-nos em retalhos.

 

Há fumo de cigarros que sai das

cabeças pensadoras que se tornam

chaminés e cata-ventos.

Os dedos continuam amarelos

como as paredes gastas de um

consultório. Olhos de víbora,

amarelos, observam as contemplações

e, no alto, o Sol escarnece e diz-nos:

São só mais 5 minutos.

 

Ana Sofia Alves

4 de Julho de 2025