Crónicas em batom rosa choque
Ligaram-me no outro dia a pedir que fosse de novo à clínica repetir as análises. Não percebi bem o que tinha acontecido, sobretudo porque estava meio adormecida quando fui despertada pelo telemóvel, mas fiquei com a sensação de que o meu sangue não tinha sido suficiente para concluir as análises. Tencionava ir lá ontem depois da fisioterapia, porque gosto de despachar as coisas assim que possível, pegar o touro pelos cornos, dizem, mas estava um pouco cansada - feliz, cansada e ligeiramente aborrecida - e é bom pegar o touro pelos cornos, mas quando nos sentimos prontos para isso.
Fui hoje à clínica e decidi que, já que tinha de ir, ia pelo menos mudar de roupa. Por causa da fisioterapia ando sobretudo de calções. São do Benfica, são bonitos, confortáveis e práticos, mas também me fazia falta alguma "normalidade". Fui ao armário e tirei um dos primeiros vestidos ao de cima - verde e branco (não queria um contraste assim tão grande com os calções do meu clube do coração, mas achei piada à situação). Parecia que ouvia a voz da Dona L. a comentar em jeito de piada a cor do meu vestido. Bem gostaria de ouvir, porque já tenho saudades destes meus amigos benfiquistas! A Dona L. podia ser minha avó, mas a idade não é tudo. Quero ser assim cheia de energia quando crescer, como muitos destes meus amigos.
Não tive paciência para trocar a t-shirt branca por outra menos desportiva, mas não achei que ficasse assim tão mal por debaixo do vestido. O verde e branco só é que não podia ser! Hoje era dia de meter um dos meus batons, porque gosto de o fazer. Pensei se devia passar o lápis creme na linha d' água e meter um pouco de rímel e pó compacto, mas depois lembrei-me de que, além de não ter muito jeito, isso implicava ter paciência para perder mais tempo a desmaquilhar-me ao fim do dia. Fiquei-me pelo batom rosa choque, da cor da fita do cabelo, e peguei num perfume de embalagem da mesma cor. Sim, escolhi o perfume pela cor da embalagem... Todavia, sabia que era doce e fresco este Touch of Pink.
Estava eu a preparar-me e a pensar "temos de aproveitar a vida e sorrir a cada dia", quando o telemóvel apitou. No relógio apareceu uma mensagem que me dizia que o Diogo Jota tinha falecido. É sempre um murro no estômago quando alguém morre, mas, quando alguém parte jovem, é difícil não sentir ainda mais a fragilidade desta vida.
É difícil não ter a sombra da morte nos nossos pensamentos, ainda que os noticiários nos pareçam anestesiar de tanta repetição. Lembrei-me do meu propósito de celebrar o dia, celebrar a vida, mesmo com a sombra da morte a pairar nos meus pensamentos. Talvez seja mesmo isto o mais importante... Celebremos a vida que é tão frágil.
Já a caminho da clínica, pensei "Porque raio querem o meu sangue?" Lá me dirigi ao laboratório e toquei à campainha, como me explicaram para fazer. A técnica riu-se da situação, tal como eu. "Então estas análises foram pedidas para a cirurgia, a senhora já foi operada e agora pediu-se a repetição... Mas não é grave porque qualquer coisa que existisse, ia sempre ser vista no dia da operação." Foi simpática. No final disse-me "Bem, vou-lhe pedir para não fazer força, dentro do possível, por causa das canadianas." Ri-me e fiquei a pensar que gosto de pessoas simpáticas e que sabem dar aos outros essa simpatia até em pequenos detalhes.
Hora de voltar a casa. Chamei outro TVDE e esperei que desta vez corresse um pouco melhor. À ida, o motorista parou no outro lado da rua sem perceber onde eu estava e tive dificuldades em conseguir fazer algum sinal ou entrar em contacto pelo telemóvel. Podiam criar uma opção na aplicação que permitisse que o passageiro assinalasse que está condicionado e não se consegue deslocar com facilidade. (Se já existir, peço desculpa pela minha ignorância.) Há uns tempos, ainda antes da operação, chamei um Uber. Não andava de canadianas como agora, mas estava coxa e não conseguia andar rápido. O motorista parou também do outro lado da rua, eu tentei fazer sinal e fui à passadeira para atravessar a estrada. O motorista ainda lá estava quando eu comecei a atravessar a estrada, mas deve ter-se cansado de esperar ou nem percebeu que era eu que tinha pedido a viagem e foi à vida dele enquanto eu estava a terminar de passar a estrada. Foi-se embora e eu fiquei novamente à espera, resignada e frustrada.
O motorista do regresso percebeu que tinha sido eu a pedir a viagem e, ao ver-me de canadianas, quis ajudar e abriu-me a porta. Pediu desculpa por falar pouco Português e questionou-me se falava Inglês para me perguntar depois o que tinha acontecido. Expliquei que foi uma queda, à saída do trabalho, mas que agora há-de melhorar.
Com o carro parado nos semáforos, em Sete Rios, olhei ao longe, para a Estrada de Benfica onde tantas vezes me encontrei para almoçar com os meus amigos benfiquistas. Parece-me tudo na mesma, eu é que mudei. Lembrei-me do Livro do Desassossego - dos livros de contas, do patrão Vasques, da Rua dos Douradores. Nestes meus pensamentos, cheguei a uma espécie de conclusão. Todos nós temos um patrão Vasques, uma Rua dos Douradores... A nossa vida é pautada por repetições, marcos que se mantêm lá, mesmo que outras coisas mudem. Ali ao lado está o Parque Eduardo VII onde tantas vezes me sentei a ler na minha pausa de almoço. Se lá estivesse agora, aposto que o Parque estaria na mesma, só eu mudei. E se o patrão Vasques desaparecer? Teremos sempre a Rua dos Douradores. E se a Rua dos Douradores desaparecer? Teremos sempre aquelas árvores do parque que permanecem intemporais e pelas quais passamos de tempos a tempos. E se essas árvores desaparecerem? Teremos sempre o azul do céu. E se o céu mudar de cor? Haverá sempre uma brisa para nos acariciar. E se não houver mais vento? Sobrarão as palavras? As palavras também se esgotam, também cansam, também se apagam... Será que sobram os pensamentos? Será que existir se resume a esta ideia cartesiana?
Saí junto à passadeira e o senhor despediu-se dizendo "You are very nice and beautiful, and with a good name, Ana." (Sofia, gosto que me chamem Sofia, ou Ana Sofia. Para a família, contudo, serei sempre a Ana.) Agradeci os elogios que me deixaram sem jeito e voltei para casa a pensar se, afinal, o batom rosa choque não teria sido demais.
Acho que alguns pensamentos se perderam durante a viagem. Escrevo agora ao telemóvel e tento não me perder também. Será que nos sobram realmente os pensamentos se tudo o resto desaparecer?