Já aqui escrevi que a minha relação com a escrita foi em tempos muito conturbada e que muito do que escrevi no passado desapareceu (foi para o lixo - reciclagem - ou para lareira, quando estava armada em drama queen).
Desses tempos e escritos, restam-me apenas memórias. Ontem, tentei recuperar pequenas coisas que escrevi e que a minha boa memória decidiu reter (acho que as rimas ajudaram, se fosse com os poemas mais recentes não sei se a boa memória bastava). Não sei se fiz bem, porque desenterrei algumas coisas menos boas. Mas recuperei 3 poemas que não me trazem assim tão más recordações e que me permitem ver o meu percurso. Os poemas e pedaços de poemas que trazem recordação menos boas também me permitem ver o meu percurso. Estes casos até me permitem ver melhor o quanto cresci e o quão forte me tornei! Tratam-se de questões muito mais profundas do que a escrita. São questões sobre quem eu sou, sobre o amor-próprio, sobre o amor, sobre o sentido de tudo e o meu lugar no mundo...
É quase certo que o que aqui deixo não estará completamente idêntico ao original desaparecido, mas esta era a Ana Sofia de há mais de 10 anos, a Ana Sofia com cerca de 17/18 anos... Uma sonhadora tristemente inconformada e revoltada com a realidade... Não era tudo mau, mas a minha cabeça era um lugar terrível naqueles tempos. Fui a uma psicóloga, mas não correu bem. Há bons e maus profissionais em todas as áreas e eu não consegui ver naquela psicóloga vontade de me ajudar. Fui lá três vezes e depois fartei-me, porque senti que aquela pessoa só queria saber do dinheiro que a minha mãe pagava... Ainda assim, as três consultas tiveram um efeito positivo. (Se calhar era mesmo assim, uma terapia cognitivo-comportamental de choque, de efeito rápido.) Como tinha decidido procurar ajuda porque sabia que não estava bem e a ajuda que tive apenas me deixou furiosa, percebi que eu teria de ser a minha própria ajuda e que teria de arranjar forças mesmo que parecesse impossível. Também percebi que tinha um amor aos livros maior do que imaginava. Quando a psicóloga me sugeria ler a Bíblia e ir à missa em vez de ler Fernando Pessoa ou Al Berto, na minha cabeça eu mostrava-lhe um manguito mental. (Ainda por cima sugeriu-me isto numa altura em que eu me sentia extremamente indignada com a religião...) Ela não percebia, certamente, mas eu sabia que aquelas palavras eram o meu alento naquela tempestade e que não as podia deixar de parte. Compreendo que, quando estamos mal, é preciso ter cuidado com algumas coisas que podem ajudar a perpetuar esse nosso estado. Contudo, hoje percebo que não era isso que acontecia quando lia O Livro do Desassossego ou O Medo. Foram precisos alguns anos para perceber melhor o que aconteceu e reconciliar-me com alguns livros. Como os descobri na pior fase da minha vida, passei a associá-los àquele período e, durante algum tempo, não lhes quis pegar. Abominei a ideia da psicóloga, mas a minha cabeça fez uma terrível associação que teve de ser desfeita com o tempo. O tempo, como dizem, cura tudo. Não foi só o tempo. Contudo, o tempo foi essencial. Hoje apercebo-me de que aqueles livros me traziam momentos de felicidade no meio do desespero e que foi graças a eles que me aguentei. Senti-me compreendida nas palavras dos outros e percebi que o mundo era um lugar estranho e intenso tanto para mim como para outros. Redescobri também a beleza do mundo e acalmei o meu coração-esponja.
Não vou partilhar as coisas que me lembram mais o que é mau do que o que é bom, mas deixo-vos três poemas que escrevi quando era ainda uma jovem à procura da sua voz. O primeiro é o mais recente dos três, acho eu, e até tenho um certo carinho por ele.
Bailarina de Palavras
Sou uma bailarina de palavras
Eu não danço com os meus pés
Danço com o meu coração
Danço com as palavras
Danço por paixão
A música que me faz dançar
Não é de Tchaikovsky
Ou de outro grande compositor
São as estrelas a brilhar
São as árvores a abanar
Mas eu e a menina de rosa
Temos algo em comum
Ambas dançamos com alma
Ambas sabemos sonhar
Elevamo-nos até onde podemos
Amor em tudo o que fazemos
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Estavam rosas de papel esquecidas no teu estendal.
Sacudi-as, pois até parecia mal!
Mas passou uma andorinha e levou consigo
uma flor que não era minha...
E se ela te fosse entregar a flor que eu ousei maltratar?
A Primavera passou, mas a andorinha voltou.
Voltou para te entregar o que eu tentara esconder
com medo de te perder.
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E eu aqui perdida na rua
Solto alta a voz que ecoa
E eu aqui à beira do rio
Sorrio perdida no meu desvario
A voz que sai do meu peito
É pequena e já sem proveito
Mas eu canto com as estrelas do céu
Que me beijam a face e me cobrem o véu
O altar é longe daqui
Sinto ardor quando estou a andar
Cada passo é uma pedra
Que queima no chão e fere a pegada
Faça a fineza de lhe devolver o coração, Don Juan modernizado
A menina precisa dele!
Ana Sofia Alves