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a world in a grain of sand

um mundo num grão de areia

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um mundo num grão de areia

Pensamento do dia #18 (A Arte e a Vida)

Sofia
08
Jul25

Estava na fisioterapia, com gelo sobre o joelho, e ia ouvindo algumas conversas. Gosto de observar e ouvir conversas. Podem chamar-me cusca, não me importo. Gosto de observar e ouvir, sem qualquer intenção de comentar ou entrar na história. Não me quero meter na vida dos outros ou sequer opinar sobre elas. Muitas vezes, nem sequer pensar sobre elas - apenas contemplar. Hoje, ali deitada, não pude deixar de pensar que, realmente, a arte tenta imitar a vida, como já na Grécia Antiga se dizia.

As palavras que tentam construir mundos, os diálogos e paisagens nos filmes que tentam reproduzir o que já conhecemos, os quadros e fotografias que tentam captar pedaços do mundo... Tudo isso, mesmo criando algo novo, mesmo tentado criar algo novo, tem por base esta sede de vida, de replicar, replicar, replicar. Não há nada de errado nisso, porque, nesta sede de vida, de sentimentos, de sensações, de emoções, constroem-se coisas belas, tão belas que se tornam vida também. A arte começa a imiscuir-se na vida e, nisto, a própria vida começa a imitar também a arte. Recordei-me de um ensaio da Doris Lessing que se debruça sobre este tema e que li em tempos. Queria encontrá-lo, mas não o consegui ainda encontrar. Talvez aproveite a deixa para me lançar aos livros dela como já gostaria de ter feito.

Esta ideia de replicar e tentar atingir o inatingível fascina-me também, porque, acreditando eu que a vida é absurdamente bela, vejo isto quase como a melhor forma de imitação possível. Este caminho que, felizmente, continuamos a perpetuar, torna a arte vida. Já não é só uma imitação. Já não é só a arte a misturar-se com a vida. A própria arte transforma-se em vida.

Deitada na fisioterapia, tinha ideias sobre isto e queria escrevê-las. Na minha cabeça, o texto ia-se construindo e eu já só esperava não me perder até chegar a casa. Tentava guardar todas estas ideias naquela gavetinha do meu cérebro, para depois as poder recuperar. Perdem-se, quase sempre, ideias e palavras no caminho, mas ganham-se outras quando começamos a escrever. Apercebo-me de que eu escrevo também para tentar replicar, para tentar recuperar algo, para tentar criar algo novo. Não é novidade, mas faz-me bem criar estas ligações entre as ideias, a escrita e o meu Eu. Pensei que gostava que existisse uma máquina que me permitisse guardar os pensamentos e transcrevesse os textos que escrevo apenas na minha cabeça. Era útil, mas, desse modo, não ia ganhar aquilo que se ganha enquanto tentamos recuperar algo.

Desde que o gelo foi retirado e me levantei, muitas coisas se passaram: fiz 3 minutos de bicicleta, fui escada fora na cadeirinha automática (desta vez em versão quase self-service, o que me deixou sorridente pela "autonomia" - não que não conseguisse subir de canadianas, mas sei que ali não é suposto criar situações de risco; foi bom explicarem-me os botõezinhos e deixarem-me ir em segurança sem ter de esperar por alguém), cheguei a casa e andei, aos poucos, a fazer pequenas coisas (dar água às gatas, abrir mais os estores e as janelas, trazer a garrafa de água de 1,5l da cozinha, pegar no Kobo e trazê-lo para o quarto, pegar no computador e trazê-lo para o quarto - enquanto pensava que se calhar estava a querer demais)... Claro que algo se pode ter perdido pelo caminho, mas a vida também se imiscui, tantas vezes, na arte. Digo arte e sinto-me ousada, mas, não faz mal, porque a ideia é boa.

Penso que escrever sobre a nossa própria vida é também uma forma de imitar, recuperar e criar. Escrever, mesmo banalidades, é criar, é construir uma obra. Somos obras sempre em construção. Escrever diários ou escrever blogs que parecem diários não é mau. Alguns falam de auto-conhecimento. É verdade. Mas é mais do que isso. Tornamo-nos (ainda mais) protagonistas da nossa vida. Os eventos banais tornam-se acontecimentos. Nunca desprezei quem escreve e descreve os seus dias, quem partilha pequenas banalidades. Eu faço-o e muito. Penso que, depois deste meu pequeno devaneio, consigo perceber ainda melhor o porquê.

Despeço-me com as palavras de Sartre, n' A Náusea:

Eis o que pensei: para o acontecimento mais banal se tornar uma aventura é preciso, e é bastante, que nos ponhamos a contá-lo. É o que engana as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias: vive cercado das suas histórias e das de outrem, vê tudo quanto lhe sucede através delas; e procura viver a sua vida como se estivesse a contá-la.

Je suis responsable... et la vie, c'est la vie

Sofia
06
Jul25

Recentemente recordei-me de uma das cadeiras que mais gostei na faculdade e fiquei com uma enorme vontade de rever alguns filmes. Talvez aproveite para o fazer enquanto faço os exercícios de recuperação.

Dos primeiros a rever, terá de ser o Vivre sa Vie de Godard. Depois, certamente o Hiroshima, Mon Amour (foi com ele que descobri as maravilhosas palavras da Marguerite Duras). Também quero rever o Pola X - registo totalmente diferente dos outros, mas achei fascinante e custa-me aceitar uma pontuação de só 5,7 no IMDb (embora perceba que seja um filme incómodo, desconcertante e com cenas um pouco explícitas que facilmente provocarão repulsa a algumas pessoas).

Aqui não se trata de uma grande reflexão, até porque a memória é parca por ter visto o filme há uns bons anos (e, do que me lembro, também não quero revelar partes da história, para não estragar a experiência a quem quiser ver), este post é mais um registo para me recordar de uma cena de um filme que achei interessante e de grande qualidade artística.

Café - Vivre sa Vie - Jean-Luc Godard

 

Moi, je crois qu’on est toujours responsable de ce qu’on fait. Je lève la main, je suis responsable. Je tourne la tête à droite, je suis responsable. Je suis malheureuse, je suis responsable. Je fume une cigarette, je suis responsable. Je ferme les yeux, je suis responsable. J’oublie que je suis responsable mais je le suis. Non, c'est que je disais: vouloir s'évader c'est de la blague. Après tout, tout est beau, il n’y a qu’à s’intéresser aux choses et les trouver belles. Si, après tout, les choses sont comme elles sont, rien d'autre. Un message, c'est un message, des assiettes sont des assiettes, les hommes sont des hommes et la vie, c’est la vie.

Calendário

Sofia
05
Jul25

Nos meus lábios, um doce
sabor a insónias e, nos meus olhos,
restam apenas brilhos e névoas
dos dias contados no calendário.

Cada traço no calendário é
mais uma lágrima que escorre
e se confunde com a chuva.

Nos meus lábios fica um suspiro,
uma palavra não dita e um peito
escancarado ao mundo e à vida.

Sobram-me cinzas na terra,
lábios molhados e sedentos
de beijar todas as horas da vida.

Tivesse eu coragem de beijar
almas como se beija a vida
e soltar do peito as palavras
que cobrem páginas com pó!

Sobram-me os olhos cansados,
dedos gastos e sangue gelado.
Sobro eu, aqui, só.

Ana Sofia Alves
5 de Julho de 2025

 

A Naifa - Monotone

Crónicas em batom rosa choque

Sofia
03
Jul25

Ligaram-me no outro dia a pedir que fosse de novo à clínica repetir as análises. Não percebi bem o que tinha acontecido, sobretudo porque estava meio adormecida quando fui despertada pelo telemóvel, mas fiquei com a sensação de que o meu sangue não tinha sido suficiente para concluir as análises. Tencionava ir lá ontem depois da fisioterapia, porque gosto de despachar as coisas assim que possível, pegar o touro pelos cornos, dizem, mas estava um pouco cansada - feliz, cansada e ligeiramente aborrecida - e é bom pegar o touro pelos cornos, mas quando nos sentimos prontos para isso.

Fui hoje à clínica e decidi que, já que tinha de ir, ia pelo menos mudar de roupa. Por causa da fisioterapia ando sobretudo de calções. São do Benfica, são bonitos, confortáveis e práticos, mas também me fazia falta alguma "normalidade". Fui ao armário e tirei um dos primeiros vestidos ao de cima - verde e branco (não queria um contraste assim tão grande com os calções do meu clube do coração, mas achei piada à situação). Parecia que ouvia a voz da Dona L. a comentar em jeito de piada a cor do meu vestido. Bem gostaria de ouvir, porque já tenho saudades destes meus amigos benfiquistas! A Dona L. podia ser minha avó, mas a idade não é tudo. Quero ser assim cheia de energia quando crescer, como muitos destes meus amigos.

Não tive paciência para trocar a t-shirt branca por outra menos desportiva, mas não achei que ficasse assim tão mal por debaixo do vestido. O verde e branco só é que não podia ser! Hoje era dia de meter um dos meus batons, porque gosto de o fazer. Pensei se devia passar o lápis creme na linha d' água e meter um pouco de rímel e pó compacto, mas depois lembrei-me de que, além de não ter muito jeito, isso implicava ter paciência para perder mais tempo a desmaquilhar-me ao fim do dia. Fiquei-me pelo batom rosa choque, da cor da fita do cabelo, e peguei num perfume de embalagem da mesma cor. Sim, escolhi o perfume pela cor da embalagem... Todavia, sabia que era doce e fresco este Touch of Pink.

Estava eu a preparar-me e a pensar "temos de aproveitar a vida e sorrir a cada dia", quando o telemóvel apitou. No relógio apareceu uma mensagem que me dizia que o Diogo Jota tinha falecido. É sempre um murro no estômago quando alguém morre, mas, quando alguém parte jovem, é difícil não sentir ainda mais a fragilidade desta vida.

É difícil não ter a sombra da morte nos nossos pensamentos, ainda que os noticiários nos pareçam anestesiar de tanta repetição. Lembrei-me do meu propósito de celebrar o dia, celebrar a vida, mesmo com a sombra da morte a pairar nos meus pensamentos. Talvez seja mesmo isto o mais importante... Celebremos a vida que é tão frágil.

Já a caminho da clínica, pensei "Porque raio querem o meu sangue?" Lá me dirigi ao laboratório e toquei à campainha, como me explicaram para fazer. A técnica riu-se da situação, tal como eu. "Então estas análises foram pedidas para a cirurgia, a senhora já foi operada e agora pediu-se a repetição... Mas não é grave porque qualquer coisa que existisse, ia sempre ser vista no dia da operação." Foi simpática. No final disse-me "Bem, vou-lhe pedir para não fazer força, dentro do possível, por causa das canadianas." Ri-me e fiquei a pensar que gosto de pessoas simpáticas e que sabem dar aos outros essa simpatia até em pequenos detalhes.

Hora de voltar a casa. Chamei outro TVDE e esperei que desta vez corresse um pouco melhor. À ida, o motorista parou no outro lado da rua sem perceber onde eu estava e tive dificuldades em conseguir fazer algum sinal ou entrar em contacto pelo telemóvel. Podiam criar uma opção na aplicação que permitisse que o passageiro assinalasse que está condicionado e não se consegue deslocar com facilidade. (Se já existir, peço desculpa pela minha ignorância.) Há uns tempos, ainda antes da operação, chamei um Uber. Não andava de canadianas como agora, mas estava coxa e não conseguia andar rápido. O motorista parou também do outro lado da rua, eu tentei fazer sinal e fui à passadeira para atravessar a estrada. O motorista ainda lá estava quando eu comecei a atravessar a estrada, mas deve ter-se cansado de esperar ou nem percebeu que era eu que tinha pedido a viagem e foi à vida dele enquanto eu estava a terminar de passar a estrada. Foi-se embora e eu fiquei novamente à espera, resignada e frustrada.

O motorista do regresso percebeu que tinha sido eu a pedir a viagem e, ao ver-me de canadianas, quis ajudar e abriu-me a porta. Pediu desculpa por falar pouco Português e questionou-me se falava Inglês para me perguntar depois o que tinha acontecido. Expliquei que foi uma queda, à saída do trabalho, mas que agora há-de melhorar.

Com o carro parado nos semáforos, em Sete Rios, olhei ao longe, para a Estrada de Benfica onde tantas vezes me encontrei para almoçar com os meus amigos benfiquistas. Parece-me tudo na mesma, eu é que mudei. Lembrei-me do Livro do Desassossego - dos livros de contas, do patrão Vasques, da Rua dos Douradores. Nestes meus pensamentos, cheguei a uma espécie de conclusão. Todos nós temos um patrão Vasques, uma Rua dos Douradores... A nossa vida é pautada por repetições, marcos que se mantêm lá, mesmo que outras coisas mudem. Ali ao lado está o Parque Eduardo VII onde tantas vezes me sentei a ler na minha pausa de almoço. Se lá estivesse agora, aposto que o Parque estaria na mesma, só eu mudei. E se o patrão Vasques desaparecer? Teremos sempre a Rua dos Douradores. E se a Rua dos Douradores desaparecer? Teremos sempre aquelas árvores do parque que permanecem intemporais e pelas quais passamos de tempos a tempos. E se essas árvores desaparecerem? Teremos sempre o azul do céu. E se o céu mudar de cor? Haverá sempre uma brisa para nos acariciar. E se não houver mais vento? Sobrarão as palavras? As palavras também se esgotam, também cansam, também se apagam... Será que sobram os pensamentos? Será que existir se resume a esta ideia cartesiana?

Saí junto à passadeira e o senhor despediu-se dizendo "You are very nice and beautiful, and with a good name, Ana." (Sofia, gosto que me chamem Sofia, ou Ana Sofia. Para a família, contudo, serei sempre a Ana.) Agradeci os elogios que me deixaram sem jeito e voltei para casa a pensar se, afinal, o batom rosa choque não teria sido demais.

Acho que alguns pensamentos se perderam durante a viagem. Escrevo agora ao telemóvel e tento não me perder também. Será que nos sobram realmente os pensamentos se tudo o resto desaparecer?

O que não nos mata, torna-nos mais fortes

Sofia
22
Jun25

Em Março tive a queda mais estúpida da minha vida que me deu cabo do menisco. Fui operada no dia 12 e estou agora a usar as minhas forças para recuperar. Não perdi o menisco e, segundo o médico, o resto do joelho está bom.

Entretanto, há uns dias tomei algumas notas para mais tarde recordar. Deixo-as aqui já com alguns acrescentos:
- Os médicos, enfermeiros e auxiliares são anjos sem asas que andam aqui pelo mundo 
- Começar a ter uma enxaqueca com náuseas antes da operação fez-me logo perder o medo da anestesia e desejar que fosse o quanto antes 
- Acordar perdida sem saber onde estava ou o que aconteceu e com lágrimas nos olhos é muitoooo estranho. As memórias lá voltaram e eu depois lá me lembrei que tinha ido para uma cirurgia  Eu que me lembro de imensas coisas com que sonho, dei por mim sem me lembrar de nada, mas deve ser melhor assim. Se acordei com lágrimas nos olhos não deviam ser coisas muito boas. Lembro-me do médico falar comigo na sala de recobro, mas parece-me sempre que foi um sonho. Sei que não foi porque junto à minha cama ficaram as folhas que o médico disse que me ia deixar.
- Gostava de nunca ter precisado de saber o que era uma arrastadeira  Nunca estive numa posição tão dependente da ajuda dos outros e agora percebo quando algumas pessoas dizem que após uma operação se têm de aprender algumas coisas como bebés.

- Sabe bem ouvir / ler umas palavras de força dos amigos e família e é sempre bom para puxarmos pelo nosso ânimo e não nos esquecermos de ser fortes. 

- Já passou uma semana e continuo a odiar as canadianas. Os 5 ou 6 degraus que o meu prédio tem antes dos elevadores nunca me pareceram tão assustadores como nos últimos dias. No dia em que voltei a casa ia caindo nos degraus e ainda por cima tive uma quebra de tensão que só piorou a situação. Só voltei a ter de enfrentar os degraus esta 4ª feira para ir à consulta. Correu um pouco melhor, mas continuou a ser uma experiência má. Não ter caído ou feito novas nódoas negras já foi uma vitória. Até à próxima consulta espero ganhar um pouco mais de força, nem que seja mental.  Espero ansiosamente por poder ter alguma carga na perna do joelho operado.
- Há quem pense que estar de baixa é estar de férias...  Foco-me em mim e na minha recuperação. Nunca pensei ver a minha auto-estima melhorar numa altura menos boa e em que estou mais vulnerável fisicamente. Evito preocupar-me com o que pensam de mim, do meu corpo e da minha vida. De repente adoro o meu corpo e quero cuidar de mim o melhor possível. Este corpo é parte de mim e já me levou a muitos lados. Ainda me há-de levar a muitos mais  Para já, acordo à mesma hora como se fosse trabalhar e depois começo a série de exercícios. Meto gelo de seguida. Passados uns minutos, volto a repetir a série de exercícios e gelo. O objectivo é fazer 5 a 10 vezes os exercícios. Para evitar o tédio, meto na TV do quarto músicas, séries ou documentários e vou ouvindo e dando um olho enquanto me dedico à recuperação.

- Cada vez faz mais sentido a expressão "o que não nos mata, torna-nos mais fortes"  Bem sei que há coisas piores, mas cada um tem as suas experiências de vida. Sem escolha, calhou-me agora esta, mas que ao menos sirva para crescer.